25.5.08

 

Um legado


Conheci Francis Schaeffer mais de perto enquanto descíamos pelas calçadas e caminhos de Huémoz, uma estação de esqui encrustada nos Alpes Suiços. Já era noite, e logo teriamos o encontro no salão de reuniões denominado Farel House. Estávamos em L'Abri, um sonho acalentado de vários meses que se tornava real naquele início de janeiro.


Duas coisas ficaram vívidas na minha memória ao longo desses anos todos. A primeira foi uma situação de perigo. Era inverno forte, bastante frio. Descíamos pois estavamos mais para a parte alta da Vila, e apesar de todo o cuidado ao andar, Schaeffer escorrega sobre a calçada revestida de gêlo. Eu e meus companheiros, o Neto e mais alguns americanos, nos pusemos a socorre-lo, aprensivos. "Isso acontece - graças a Deus estou bem." Ele se pôs de pé e continuamos a caminhada. Não sem antes dirigir-se a mim, preocupado com a situação política no Brasil.


Vivíamos num estado de exceção. O AI-5 já tinha mais de quatro anos, porém seriam necessários mais alguns anos até a abertura definitiva. Ele estava apreensivo, com o estado de direito, com a liberdade, com a democracia como caminho para soluções políticas.


Schaeffer entendia que a democracia era um preceito dado por Deus - em todos os aspectos resgata dignidade e valor à sociedade e ao indivíduo. Eu pessoalmente - ainda muito jovem, não sabia como elaborar uma resposta - fiquei a ouvi-lo. Esses dois contrastes me ajudaram em muito. Primeiro que o meu 'ídolo' da juventude era carne e osso. Acho que isso eu levo comigo de maneira muito forte. Sempre tive com os poderosos e personagens de destaque - daqui e d'além mares, esse misto de desrespeito honorável e desconstrução protocolar.


Em segundo lugar que o bom cristão é crítico e engajado. A maneira como o diálogo se sucedeu eu perdi na memória, mas o impacto de sua preocupação mudou meu jeito de ver o mundo. Sua pergunta não havia sido: como vai a igreja, como está o mercado editorial, como estão os seminários ... lá no Brasil? Sua preocupação denotava profundidade e esclarecimento. Sua visão macro atacava as causas, não os efeitos. Ele queria saber do bem estar do povo, da estrutura social e da justiça no nível da sociedade como um todo e do indivíduo como cidadão.


Esse primeiro episódio é mais do que simbólico, por ser revelador em extremo. Hoje olho para a década de 80 e compreendo suas motivações nos títulos que desafiavam o cristão para uma maior assertividade na sociedade e na cultura. É claro que o aborto ganhou destaque para a época - era o clímax da hipocrisia na sociedade americana. Mas ele não era um cara de causa única. Com relação à guerra do Vietnã, ele era um opositor a Nixon e às suas políticas - por isso, não creio que ele hoje seria pró Republicano Neo Conservador. Mas isso é especulação.


A grande injustiça com Schaeffer é a de presumir que suas motivações permaneceriam estáticas diante das novas e mais complexas situações em que vivemos hoje. Schaeffer se distanciou cada vez mais do pensamento 'main stream' americano. Impossível entende-lo sem que se conheça Hans Rookmaaker mais a fundo - seu mentor no mundo das artes. Schaeffer ousou ao questionar os 6 dias literais de Gênesis. Ele sempre recebia paulada dos dois lados do espectro teológico - e dizia com certa ironia, de que isso lhe fazia bem pois era indicador de que estava no caminho certo. Os calvinistas extremos criticavam sua paciência em responder e explicar os caminhos da fé - sendo ele mesmo um calvinista. Queriam que ele utilizasse os termos teológicos e abordagens puristas (preciosamente perfeitas) - o que ele dava poucos ouvidos e sim, abraçava um pragmatismo amoroso e cheio de compaixão.


O outro episódio que me marcou muito foi um telefonema que ele recebeu no meio da tarde. Estávamos eu e mais uns dois colegas, desempacotando as caixas da mudança do casal, para seu novo chalé. Foi nesse ano que eles fizeram uma mudança mais radical, deixando Chalet Les Meleses, onde tudo nasceu - e onde por quase vinte anos foi palco da hospitalidade e do coração do projeto L'Abri. Ao atender, praticamente todos que estavam na casa puderam acompanhar a sua fala com essa moça cristã. Me parecia da África do Sul - não sei por certo. Schaeffer repetia sem parar enquanto sua interlocutora relatava as notícias: "Oh I am sorry." Percebíamos pelo tom de sua voz, que ficava mais aguda e comovida, que realmente não eram boas notícias. E em seguida, ele fala alguma coisa a mais de conselho e conforto, e põe-se a orar. A gente por perto, emudecido e arrepiado. "Senhor Deus, separados por milhares de milhas, vimos juntos à Tua presença para humildemente Te pedir ..."


Schaeffer era isso - carne e osso, e muito coração. Schaeffer era isso, tomado pelo Espirito e muita oração. O cara era um gigante da fé.


Num aspecto mais abrangente, L'Abri me fez muito bem. Transformou meu modo de ver o mundo, me libertou de muito lixo e porcaria que carregava, me deu segurança na forma radical em que estava recém vocacionado, permitindo que ocupasse função de relevância no meio profissional com muita ousadia. L'Abri foi um tempo de descoberta e libertação para mim.


Percebi que a fé não tem horizontes demarcatórios, que a vida cristã tem que ser assumida de maneira individual e não pelo que os outros acham. Que teria que continuamente depender do Pai e sempre me acertar com Ele - os ponteiros do ritmo e os ângulos dos caminhos trilhados. Compreendi melhor o mundo com seus movimentos sociais, políticos e intelectuais - me fez enxergar e discernir o significado de ser cristão no nivel individual e comunitário. E consolidou a minha fé e o meu chamado para que até hoje eu continue lutando por transformações.


Eu fui um leitor ávido do homem. Em algumas ocasiões compartilhei com irmãos - quer em palestras e aulas, o que aprendi com os seus escritos e os derivados. É fato que sua trilogia era um 'must read' para quem fosse trabalhar com jovens e universitários. Era parte do currículo da ABU. A complementar suas leituras estavam John Stott, Os Guiness e os teólogos latino-americanos evangélicos. Em 74, no Congresso de Lausanne, o único americano a não destoar das ênfases trazidas pelo terceiro mundo foi Schaeffer - pois ele mesmo entendia o significado da missão integral e mais - a praticava no seu dia a dia.


Hoje enquanto, só nos Estados Unidos cerca de 90 bilhões de dolares são arrecadados anualmente para Missões e Organizações Humanitárias, percebemos o quanto Schaeffer e L'Abri não eram dirigidos pelo mercado. Muitos dos seus colaboradores íntimos atestam esse desprendimento e manutenção de princípio. Até sua morte, a vendagem de seus livros suplantaram milhões de unidades. E todos os direitos eram revertidos para L'Abri.

Seu estilo de vida simples - bem aculturado para um residente na Suiça; sua dedicação incansável aos temas que tocavam sua época: a arte, a cultura, o entendimento e assertividade da fé; e seu exemplo como figura cristã e humana são legados que farão que Francis Schaeffer permaneça em destaque no rol dos gigantes da fé. Sempre que havia um confronto com o pensamento do homem moderno - contestador e questionador, estava ali em Schaeffer alguém que podia aplicar I Pedro 3:15 com extrema propriedade.


Era vida e compaixão juntas. Seu impacto positivo perdura até os dias de hoje.

Comments:
Volney, vc é um abençoado por poder ter conhecido alguém tão especial e importante para Deus e para os homens...eu sou daquelas que está sempre a buscar algo especial nas pessoas, creio que o que tenho para aprender com o homem será ele quem me ensinará e Deus o usará para isso , então, sempre busco aprender com os homens, sejam cristãos ou não, presto sempre muita atenção no que dizem e falam. Vejo vc descrevendo Schaeffer com tanta paixão e respeito que me emociono, pois sei que tu aprendeste com ele, e aprender, infelizmente, não é para muitos.
É muito bacana ver como seu coração expressa vida e aviva a memória de um grande homem.
Nesse pouco tempo que estou nessa blogosféra maluca, tenho aprendido com algumas pessoas muito especiais, Lou (Gruta), Pavarine, Alysson, Mamanunes, Paulo Brabo, e claro, com vc !
Obrigada por compartilhar conosco suas experiencias e sabedoria. Isso me faz feliz.
Um super abraço pra vc.

Alice
 
Tá bom, tá bom, onde eu assino?

Só não deixe quem nunca viu o homem, como você, falar dele como se o tivesse visto, feito esses caras fundamentalistas que querem arrumar algum boi de piranha para as suas insanidades radicais.
 
Vc conheceu o Francis Schaeffer com essa íntimidade descrita no post... E minha mãe é virgem.


Tirando a falta de citar de onde vem essa narrativa da vida do Francis, sem dúvida é excelente texto. Me encantei com a vida dele.


Abraços Volney
Fique na Graça
 
Grande Volney,

acho que um Post enorme deste (o qual eu li em paz e adorei) mereceria um comentário um pouco "mais grande" também!

1) Lembra que na Zona da Reforma falastes que ainda não conseguia expressar coisas mais pessoais no seu Blog? Acho que hoje essa barreira foi formidavelmente vencida: seus sentimentos pularam do seu coração, para o teclado e através do meu monitor Siemens tocaram minha alma. Parabéns!

2) Por falar em Zona da Refora, acho que o último programa não foi nada sua praia... seriam influências de L`Abri?

3) Agora ao que interessa: Taí a grande diferença em se ler um livro e conhecer o autor do livro - a regra geral é mesmo a pessoa ser pessoalmente mais interessante.

4) Gosto da ponderação do Lou em não aceitar que os fundamentalistas abusem das idéias do seu amigo. Talvez esteja aí a armadilha. Se abusam da própria Bíblia e de Jesus, de Pedro e Paulo, por que não de outros de menor destaque?

Conclusão, isso só me faz pensar que terei que futuramente ler alguma outra coisa de Schäffer, além daquele texto sobre humanismo que você linkou.

No mais a luta continua, quando retornar a L´Abri, não se esqueça de dar um pulo em Munique para nos visitar.

Fraternalmente,

Roger
 
Alice, assim fico sem graça - e como minha amiga posso lhe dizer que a recíproca tem sido verdadeira com toda essa turma incrível que você citou. Alguns já conheço pessoalmente. Semana passada esteve aqui o Ricardo lá de João Pessoa.

Lou, nutro um sentimento de profunda preocupação (como vc é testemunha e de resto a internet) pelos caminhos do Fundamentalismo e do Dominianismo pregado por alguns mais radicais e tresloucados, onde acomodar-se atrás de razões pouco pensadas e completamente dispare da realidade é uma constante. O uso de Schaeffer para agendas do momento é sacanagem pura.

São Vitor, se soubesses a verdade a respeito da idade deste blogueiro - busco escondê-la a todo custo. O Lou (muitíssimo mais velho) que o diga.

É isso aí meu véio Roger, ainda temos muito pra compartilhar e espero que eu abra de vez as comportas. Desde é claro, possamos seguir juntos na revolução desse cristianismo código aberto.
 
uau, voce conheceu o Schaeffer...
que sensacional!
deve ter sido mesmo marcante...
e seu post está muito bom de ler e de se imaginar...
uau...
estar em LAbri deve ter sido uma experiencia unica mesmo...
parabens pelo post.
além de vivenciar o que vivenciou, compartilhou de modo bem legal!
uau... voce conheceu o Schaeffer...
beijos,
alê
 
Segundo o orkut são 87 anos.


Espero que não seja tanto assim...

Big Abraços Volney
Fique na Graça
 
Legal Alessandra - volte sempre!

São Victor - se contassemos o tempo sem dormir, talvez eu passaria ... ;)
 
Este comentário foi removido pelo autor.
 
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